27 novembro, 2006

"Não é correcto introduzir um corte orçamental cego sem ter feito reformas"


Não são precisas avaliações internacionais para saber o que vai mal no ensino superior português. 
O diagnóstico é conhecido e é preciso actuar, diz o reitor da Universidade de Lisboa. 
O que é que o ministério que tutela o ensino superior fez? "Nada", responde.

Por Bárbara Wong


"As universidades vão asfixiar." A previsão é de António Nóvoa, reitor da Universidade de Lisboa (UL), depois de analisar a situação das oito faculdades que fazem parte da instituição que dirige. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) decidiu que, além dos 6,2 por cento de redução no orçamento de funcionamento, as instituições deverão passar a pagar 7,5 por cento à Caixa Geral de Aposentações, mais os aumentos salariais de 1,5 por cento. Tudo somado, a redução pode chegar aos 15 por cento. "Nunca houve um corte tão brutal e não há memória de nenhum país que tivesse procedido a um corte desta natureza.", acusa.
PÚBLICO - Desde que foi conhecido o Orçamento de Estado para 2007 que universidades e politécnicos se queixam da falta de verbas para funcionar. Não é o que acontece todos os anos?
ANTÓNIO NÓVOA - É importante que a opinião pública compreenda que não estamos a defender privilégios de nenhum grupo sócio-profissional, que o que está em causa é uma luta pela defesa das instituições. Desde que foi criado este modelo de financiamento que as escolas recebem, em média, 80 por cento do valor atribuído, ou seja, o dinheiro não é transferido na totalidade. E temos vivido sem gastar um euro a mais. Portanto não se pode acusar as instituições de desperdício. 
O ministro Mariano Gago diz que as instituições têm de fazer crescer as suas receitas próprias. Concorda?
Espero que não estejamos a falar de aumento das propinas porque as famílias portuguesas não pagam tão pouco quanto isso. As receitas próprias são essenciais e hoje em dia não são tão pequenas quanto isso. Mas esse caminho não se faz retirando às instituições a capacidade de funcionamento, faz-se através de reformas.
Que reformas são necessárias? 
Há quatro elementos que são fundamentais para a reforma das universidades. Primeiro é preciso reorganizar a rede do ensino superior. O que é que o ministro fez até agora? Nada. Segundo: O modelo de gestão das universidades está ultrapassado. Em terceiro, toda a gente reclama por um novo Estatuto da Carreira Docente. O que fez o ministro? Nada. À volta destes três elementos há ainda o da avaliação externa e independente. É necessário montar um sistema muito exigente e credível.
Mas Gago pediu avaliações à Rede Europeia para a Garantia de Qualidade do Ensino Superior (Enqa) e à OCDE. Não é um avanço?
Toda a gente sabe o que é preciso fazer porque o diagnóstico já foi feito. Na área do ensino superior anunciaram-se muitas coisas mas ainda não se fez nada e já perdemos dois anos de governação. Não é correcto, do ponto de vista político, introduzir de forma cega um corte orçamental na ordem dos 15 por cento sem ter feito qualquer reforma. Este corte brutal vai criar uma situação insustentável e de ingovernabilidade das instituições.
As reformas deveriam vir primeiro?
A decisão [de reduzir o orçamento] revela um grande desconhecimento por parte de Mariano Gago. E isso nota-se nas afirmações que fez [na apresentação do relatório da Enqa, a semana passada]: quando questionado sobre os cortes orçamentais, disse que não teme "nem isso, nem que o aquecimento global submirja todas as instituições com a subida do nível das águas do mar". Essa é uma piada de mau gosto e que mostra bem esta espécie de insensibilidade de quem está a tutelar uma área tão importante para o país como é o ensino superior.
O ministro diz que as verbas para a ciência vão beneficiar as universidades. Isso não vai acontecer?
É ficção. O ministro das Finanças já veio desmistificar essa ideia, quando disse: "Não confundamos ciência com ensino superior."
Porque é que o investimento no superior deveria ser maior?
Portugal é o país com o ensino superior mais barato da Europa. Segundo dados do Eurostat, um estudante português custa cerca de 4450 euros, quando a média da Europa dos 15 é de 8900 euros, praticamente o dobro. Outro dado importante: Portugal gasta um por cento do Produto Interno Bruto (PIB) com o ensino superior, quando a Comissão Europeia já recomendou que se invista dois por cento. Este ano, esse valor pode descer para os 0,93 por cento do PIB. Estamos a afastar-nos da Europa quando deveríamos fazer um esforço de qualificação dos portugueses.
Esses cortes não vão obrigar as instituições a reorganizar-se e fazer com que as mais fracas desapareçam?
Esse é um argumento atraente, mas todas tiveram cortes iguais. O que vai acontecer é que esta política vai conduzir ao estrangulamento das instituições. Daqui a um ano, quando a nova Agência Nacional de Avaliação tiver resultados, já sabemos o que vai dizer: que as universidades são endogâmicas, que estão asfixiadas... Tudo fruto de não terem sido feitas reformas.

Publicado no jornal 'Público' de hoje.

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